quarta-feira, 24 de abril de 2013

As Formigas de Lygia


 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
AS FORMIGAS

Por Lygia Fagundes Telles

 

Quando minha prima e eu descemos do táxi já era quase noite.

Ficamos imóveis diante do velho sobrado de janelas ovaladas,

iguais a dois olhos tristes, um deles vazado por uma pedrada.

Descansei a mala no chão e apertei o braço da prima.

— É sinistro.

Ela me impeliu na direção da porta. Tínhamos outra escolha?

Nenhuma pensão nas redondezas oferecia um preço melhor

a duas pobres estudantes, com liberdade de usar o fogareiro

no quarto, a dona nos avisara por telefone que podíamos

fazer refeições ligeiras com a condição de não provocar incêndio.

Subimos a escada velhíssima, cheirando a creolina.

— Pelo menos não vi sinal de barata — disse minha prima.

A dona era uma velha balofa, de peruca mais negra do

que a asa da graúna. Vestia um desbotado pijama de seda japonesa

e tinha as unhas aduncas recobertas por uma crosta

de esmalte vermelho-escuro descascado nas pontas encardidas.

Acendeu um charutinho.

— É você que estuda medicina? — perguntou soprando a

fumaça na minha direção.



— Estudo direito. Medicina é ela.

A mulher nos examinou com indiferença. Devia estar

pensando em outra coisa quando soltou uma baforada tão

densa que precisei desviar a cara. A saleta era escura, atulhada

de móveis velhos, desparelhados. No sofá de palhinha

furada no assento, duas almofadas que pareciam ter

sido feitas com os restos de um antigo vestido, os bordados

salpicados de vidrilho.

— Vou mostrar o quarto, fica no sótão — disse ela em

meio a um acesso de tosse. Fez um sinal para que a seguíssemos.

— O inquilino antes de vocês também estudava medicina,

tinha um caixotinho de ossos que esqueceu aqui,

estava sempre mexendo neles.

Minha prima voltou-se:

— Um caixote de ossos?

A mulher não respondeu, concentrada no esforço de subir

a estreita escada de caracol que ia dar no quarto. Acendeu

a luz. O quarto não podia ser menor, com o teto em declive

tão acentuado que nesse trecho teríamos que entrar

de gatinhas. Duas camas, dois armários e uma cadeira de

palhinha pintada de dourado. No ângulo onde o teto quase

se encontrava com o assoalho, estava um caixotinho coberto

com um pedaço de plástico. Minha prima largou a mala e

pondo-se de joelhos puxou o caixotinho pela alça de corda.

Levantou o plástico. Parecia fascinada.

— Mas que ossos tão miudinhos! São de criança?

— Ele disse que eram de adulto. De um anão.

— De um anão? É mesmo, a gente vê que já estão formados...

Mas que maravilha, é raro à beça esqueleto de anão.

E tão limpo, olha aí — admirou-se ela. Trouxe na ponta dos

dedos um pequeno crânio de uma brancura de cal. — Tão

perfeito, todos os dentinhos!

— Eu ia jogar tudo no lixo, mas se você se interessa pode

ficar com ele. O banheiro é aqui ao lado, só vocês é que vão

usar, tenho o meu lá embaixo. Banho quente, extra. Telefone,

também. Café das sete às nove, deixo a mesa posta na



cozinha com a garrafa térmica, fechem bem a garrafa — recomendou

coçando a cabeça. A peruca se deslocou ligeiramente.

Soltou uma baforada final: — Não deixem a porta

aberta senão meu gato foge.

Ficamos nos olhando e rindo enquanto ouvíamos o barulho

dos seus chinelos de salto na escada. E a tosse encatarrada.

Esvaziei a mala, dependurei a blusa amarrotada num

cabide que enfiei num vão da veneziana, prendi na parede,

com durex, uma gravura de Grassmann e sentei meu urso

de pelúcia em cima do travesseiro. Fiquei vendo minha prima

subir na cadeira, desatarraxar a lâmpada fraquíssima

que pendia de um fio solitário no meio do teto e no lugar

atarraxar uma lâmpada de duzentas velas que tirou da sacola.

O quarto ficou mais alegre. Em compensação, agora a

gente podia ver que a roupa de cama não era tão alva assim,

alva era a pequena tíbia que ela tirou de dentro do caixotinho.

Examinou-a. Tirou uma vértebra e olhou pelo buraco

tão reduzido como o aro de um anel. Guardou-as com a delicadeza

com que se amontoam ovos numa caixa.

— Um anão. Raríssimo, entende? E acho que não falta

nenhum ossinho, vou trazer as ligaduras, quero ver se no

fim da semana começo a montar ele.

Abrimos uma lata de sardinha que comemos com pão,

minha prima tinha sempre alguma lata escondida, costumava

estudar até a madrugada e depois fazia sua ceia.

Quando acabou o pão, abriu um pacote de bolacha Maria.

— De onde vem esse cheiro? — perguntei farejando. Fui

até o caixotinho, voltei, cheirei o assoalho. — Você não está

sentindo um cheiro meio ardido?

— É de bolor. A casa inteira cheira assim — ela disse. E

puxou o caixotinho para debaixo da cama.

No sonho, um anão louro de colete xadrez e cabelo repartido

no meio entrou no quarto fumando charuto. Sentou-se

na cama da minha prima, cruzou as perninhas e ali ficou

muito sério, vendo-a dormir. Eu quis gritar, Tem um anão



no quarto!, mas acordei antes. A luz estava acesa. Ajoelhada

no chão, ainda vestida, minha prima olhava fixamente algum

ponto do assoalho.

— Que é que você está fazendo aí? — perguntei.

— Essas formigas. Apareceram de repente, já enturmadas.

Tão decididas, está vendo?

Levantei e dei com as formigas pequenas e ruivas que

entravam em trilha espessa pela fresta debaixo da porta,

atravessavam o quarto, subiam pela parede do caixotinho

de ossos e desembocavam lá dentro, disciplinadas como

um exército em marcha exemplar.

— São milhares, nunca vi tanta formiga assim. E não tem

trilha de volta, só de ida — estranhei.

— Só de ida.

Contei-lhe meu pesadelo com o anão sentado em sua

cama.

— Está debaixo dela — disse minha prima e puxou para

fora o caixotinho. Levantou o plástico. — Preto de formiga!

Me dá o vidro de álcool.

— Deve ter sobrado alguma coisa aí nesses ossos e elas

descobriram, formiga descobre tudo. Se eu fosse você, levava

isso lá pra fora.

— Mas os ossos estão completamente limpos, eu já disse.

Não ficou nem um fiapo de cartilagem, limpíssimos. Queria

saber o que essas bandidas vêm fuçar aqui.

Respingou fartamente o álcool em todo o caixote. Em seguida,

calçou os sapatos e, como uma equilibrista andando

no fio de arame, foi pisando firme, um pé diante do outro na

trilha de formigas. Foi e voltou duas vezes. Apagou o cigarro.

Puxou a cadeira. E ficou olhando dentro do caixotinho.

— Esquisito. Muito esquisito.

— O quê?

— Me lembro que botei o crânio em cima da pilha, me

lembro que até calcei ele com as omoplatas para não rolar. E

agora ele está aí no chão do caixote, com uma omoplata de

cada lado. Por acaso você mexeu aqui?



— Deus me livre, tenho nojo de osso! Ainda mais de anão.

Ela cobriu o caixotinho com o plástico, empurrou-o com

o pé e levou o fogareiro para a mesa, era a hora do seu chá.

No chão, a trilha de formigas mortas era agora uma fita escura

que encolheu. Uma formiguinha que escapou da matança

passou perto do meu pé, já ia esmagá-la quando vi que

levava as mãos à cabeça, como uma pessoa desesperada.

Deixei-a sumir numa fresta do assoalho.

Voltei a sonhar aflitivamente, mas dessa vez foi o antigo

pesadelo com os exames, o professor fazendo uma pergunta

atrás da outra e eu muda diante do único ponto que

não tinha estudado. Às seis horas o despertador disparou

veementemente. Travei a campainha. Minha prima dormia

com a cabeça coberta. No banheiro, olhei com atenção para

as paredes, para o chão de cimento, à procura delas. Não vi

nenhuma. Voltei pisando na ponta dos pés e então entreabri

as folhas da veneziana. O cheiro suspeito da noite tinha desaparecido.

Olhei para o chão: desaparecera também a trilha

do exército massacrado. Espiei debaixo da cama e não vi

o menor movimento de formigas no caixotinho coberto.

Quando cheguei por volta das sete da noite, minha prima

já estava no quarto. Achei-a tão abatida que carreguei no sal

da omelete, tinha a pressão baixa. Comemos num silêncio

voraz. Então me lembrei.

— E as formigas?

— Até agora, nenhuma.

— Você varreu as mortas?

Ela ficou me olhando.

— Não varri nada, estava exausta. Não foi você que varreu?

— Eu?! Quando acordei, não tinha nem sinal de formiga

nesse chão, estava certa que antes de deitar você juntou

tudo... Mas então, quem?!

Ela apertou os olhos estrábicos, ficava estrábica quando

se preocupava.

— Muito esquisito mesmo. Esquisitíssimo.

Fui buscar o tablete de chocolate e perto da porta senti



de novo o cheiro, mas seria bolor? Não me parecia um cheiro

assim inocente, quis chamar a atenção da minha prima

para esse aspecto, mas ela estava tão deprimida que achei

melhor ficar quieta. Espargi água-de-colônia Flor de Maçã

por todo o quarto (e se ele cheirasse como um pomar?) e

fui deitar cedo. Tive o segundo tipo de sonho, que competia

nas repetições com o tal sonho da prova oral, nele eu

marcava encontro com dois namorados ao mesmo tempo.

E no mesmo lugar. Chegava o primeiro e minha aflição era

levá-lo embora dali antes que chegasse o segundo. O segundo,

desta vez, era o anão. Quando só restou o oco de

silêncio e sombra, a voz da minha prima me fisgou e me

trouxe para a superfície. Abri os olhos com esforço. Ela estava

sentada na beira da minha cama, de pijama e completamente

estrábica.

— Elas voltaram.

— Quem?

— As formigas. Só atacam de noite, antes da madrugada.

Estão todas aí de novo.

A trilha da véspera, intensa, fechada, seguia o antigo

percurso da porta até o caixotinho de ossos por onde subia

na mesma formação até desformigar lá dentro. Sem caminho

de volta.

— E os ossos?

Ela se enrolou no cobertor, estava tremendo.

— Aí é que está o mistério. Aconteceu uma coisa, não entendo

mais nada! Acordei pra fazer pipi, devia ser umas três

horas. Na volta, senti que no quarto tinha algo mais, está

me entendendo? Olhei pro chão e vi a fila dura de formigas,

você se lembra? Não tinha nenhuma quando chegamos. Fui

ver o caixotinho, todas se trançando lá dentro, lógico, mas

não foi isso o que quase me fez cair pra trás, tem uma coisa

mais grave: é que os ossos estão mesmo mudando de posição,

eu já desconfiava mas agora estou certa, pouco a pouco

eles estão... Estão se organizando.

— Como, se organizando?



Ela ficou pensativa. Comecei a tremer de frio, peguei

uma ponta do seu cobertor. Cobri meu urso com o lençol.

— Você lembra, o crânio entre as omoplatas, não deixei

ele assim. Agora é a coluna vertebral que já está quase formada,

uma vértebra atrás da outra, cada ossinho tomando

o seu lugar, alguém do ramo está montando o esqueleto,

mais um pouco e... Venha ver!

— Credo, não quero ver nada. Estão colando o anão, é

isso?

Ficamos olhando a trilha rapidíssima, tão apertada que

nela não caberia sequer um grão de poeira. Pulei-a com o

maior cuidado quando fui esquentar o chá. Uma formiguinha

desgarrada (a mesma daquela noite?) sacudia a cabeça

entre as mãos. Comecei a rir e tanto que se o chão não

estivesse ocupado, rolaria por ali de tanto rir. Dormimos

juntas na minha cama. Ela dormia ainda quando saí para

a primeira aula. No chão, nem sombra de formiga, mortas e

vivas desapareciam com a luz do dia.

Voltei tarde essa noite, um colega tinha se casado e teve

festa. Vim animada, com vontade de cantar, passei da conta.

Só na escada é que me lembrei: o anão. Minha prima

arrastara a mesa para a porta e estudava com o bule fumegando

no fogareiro.

— Hoje não vou dormir, quero ficar de vigia — ela avisou.

O assoalho ainda estava limpo. Me abracei ao urso.

— Estou com medo.

Ela foi buscar uma pílula para atenuar minha ressaca,

me fez engolir a pílula com um gole de chá e ajudou a me

despir.

— Fico vigiando, pode dormir sossegada. Por enquanto

não apareceu nenhuma, não está na hora delas, é daqui a

pouco que começa. Examinei com a lupa debaixo da porta,

sabe que não consigo descobrir de onde brotam?

Tombei na cama, acho que nem respondi. No topo da

escada o anão me agarrou pelos pulsos e rodopiou comigo

até o quarto, Acorda, acorda! Demorei para reconhecer



minha prima que me segurava pelos cotovelos. Estava lívida.

E vesga.

— Voltaram — ela disse.

Apertei entre as mãos a cabeça dolorida.

— Estão aí?

Ela falava num tom miúdo, como se uma formiguinha

falasse com sua voz.

— Acabei dormindo em cima da mesa, estava exausta.

Quando acordei, a trilha já estava em plena movimentação.

Então fui ver o caixotinho, aconteceu o que eu esperava...

— O que foi? Fala depressa, o que foi?

Ela firmou o olhar oblíquo no caixotinho debaixo da

cama.

— Estão mesmo montando ele. E rapidamente, entende?

O esqueleto já está inteiro, só falta o fêmur. E os ossinhos

da mão esquerda, fazem isso num instante. Vamos embora

daqui.

— Você está falando sério?

— Vamos embora, já arrumei as malas.

A mesa estava limpa e vazios os armários escancarados.

— Mas sair assim, de madrugada? Podemos sair assim?

— Imediatamente, melhor não esperar que a bruxa acorde.

Vamos, levanta!

— E para onde a gente vai?

— Não interessa, depois a gente vê. Vamos, vista isto, temos

que sair antes que o anão fique pronto.

Olhei de longe a trilha: nunca elas me pareceram tão rápidas.

Calcei os sapatos, descolei a gravura da parede, enfiei

o urso no bolso da japona e fomos arrastando as malas

pelas escadas, mais intenso o cheiro que vinha do quarto,

deixamos a porta aberta. Foi o gato que miou comprido ou

foi um grito?

No céu, as últimas estrelas já empalideciam. Quando

encarei a casa, só a janela vazada nos via, o outro olho era

penumbra.

quinta-feira, 18 de abril de 2013

Reflexão sobre ser ou não ser escritor




















Meus caros amigos, estive pensando por esses dias sobre estar escrevendo livros e cheguei a conclusão de que eu não escrevo para que o leitor me reconheça como escritor, mas apenas para preencher seu o tempo, escrevendo de maneira simples, sem os arroubos estilísticos tão comuns aos verdadeiros literatos. Outra coisa é que, no meu entender, o autor desaparece depois que a primeira página é virada e o livro é aberto; a obra agora não será mais dele.