terça-feira, 28 de maio de 2013

O meu diabo veste Renner, ora essa!

Gente boa desse rincão, depois desta notícia abaixo, devo também fazer a continuação de meu diabo (Onde o Diabo Perdeu as Botas - disponibilíssimo na livraria CasaAberta Tel: 047-3045 5815 ). Vou sim, ah se não vou! O Weisberger que tome cuidado, pois o meu diabo veste Renner e não tá prosa!

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A esperada sequência de O diabo veste Prada
 
Por Anneliese Pires para o Blog Social 1 (http://blogs.ne10.uol.com.br/social1/)


Para quem é fã de O diabo veste Prada temos uma boa notícia:  o filme poderá mesmo ganhar uma sequência. Lauen Weisberger postou no Facebook uma foto de uma caixa cheia do seu novo livro, "Revenge wears Prada: The devil returns", que chega às livrarias do exterior no próximo dia 4 de junho. Os exemplares já estão disponíveis na Amazon, onde já está rolando pré-venda. Weisberger contou ainda que a capa branca é edição limitada. Agora começa a torcida por um novo filme: Meryl Streep já topou.
CONTINUAÇÃO Livro que dá sequência a O diabo veste Prada já está disponível na Amazon CONTINUAÇÃO Livro que dá sequência a O diabo veste Prada já está disponível na Amazon

sexta-feira, 24 de maio de 2013

Coração não se compra ou contrariando os krítikos!



















Gente dos céus e da terra, contrariando a natureza e os krítikos de pla(n)tão, aqui vai mais uma historinha para aqueles que por um acaso, má sorte ou desígnios de Deus, passem  por este blog.

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CORAÇÃO NÃO SE COMPRA EM LOJA

Por Hélio Jorge Cordeiro

Horatio Lane vestia um sobretudo preto sobre uma camiseta de gola roulé grená. Vez ou outra, ajeitava os cabelos ruivos, açoitados pelo vento frio que soprava naquela manhã. Tinha os olhos claros, mas tristes. Ele estava sentado num banco do Central Park, dando comida aos pássaros. O sol brilhava forte o que, de algum modo, amenizava a frieza daquela manhã típica de Outono em Nova York. Os pássaros iam e vinham, em pares, comer as migalhas jogadas por Horatio em frente ao banco onde estava sentado havia um tempo.

Um homem com bigodes vastos, usando um cachecol xadrez e um par de óculos de aros de metal, chegou com um jornal embaixo do braço. Sentou-se na outra extremidade do banco, cruzou as pernas, abriu o diário e começou a lê-lo com interesse.

Horatio terminou de esvaziar o saco com milho e migalhas de pão, amassou-o e jogou-o na lixeira de metal próxima ao seu lado do banco. Recostou-se e ficou observando toda a paisagem ao redor, contemplativo, enquanto o outro homem, ao seu lado, continuava com a sua leitura.

- A vida é muito interessante, não é? – disse Horatio, inclinado e com os cotovelos sobre as coxas e olhando pra frente.

O homem que lia o jornal deixou-o de lado, olhou ao redor para certificar-se de que era com ele a conversa que ali se iniciara e deu atenção a Horatio.


- Desculpe?... – falou o homem que lia o jornal.


- A vida é interessante, não é mesmo? – repetiu Horatio.


- Oh, claro, claro que é. – falou o homem, segurando o jornal sobre as pernas.


Horatio estendeu a mão:


 - Horatio Lane, professor de filosofia.


- Oh, prazer, Rick Turner, corretor de seguros.


- O senhor acha mesmo isso? – Horatio voltou a perguntar.


- Sim, eu penso que a vida é interessante, claro. Por exemplo, o senhor aqui alimentando os pássaros. Eu admiro muito pessoas assim, que gostam da natureza... Tratam bem os animais... Apesar de ser corretor de seguros – disse Rick Turner, com um leve sorriso no rosto.

Horatio riu discretamente e, em seguida, fez-se silêncio. Os dois levaram os olhares para a paisagem à frente deles, contemplativos.


- Meu querido pai sempre dizia: Horatio, coração não se compra na loja, mas em outro coração... – disse Horatio, quebrando o gelo momentâneo que havia se instalado naquele banco.

- Belo pensamento. – respondeu RickTurner.


- Mas eu nunca entendi muito bem o que isso queria dizer... – disse Horatio, com certo ar de decepção no semblante.


- Verdade? – exclamou Rick Turner, demonstrando lamentar o fato.


- Sim... Mas meu irmão dizia que sabia o que significava.  – falou Horatio, dirigindo o olhar para bem longe dali.


- Mesmo? – falou Rick Turner.


- Mas, por outro lado, minha mãe me recriminava por eu não entender o significado desse pensamento. – disse Horatio.


- Você acha que ela gostava mais de seu irmão, não é? – perguntou Rick Turner, curioso.


- Não sei. Não estou bem certo disso. – falou Horatio.


- Você acha que ele mentia? Dizia que sabia, mas na verdade não sabia? – perguntou Rick Turner, encostando o jornal de lado, se achegando para perto de seu interlocutor.


- Acho que sim. – disse Horatio.


- O que o faz pensar que ele mentia? – arguiu Rick Turner.


- Porque ele matou pessoas. – disse um tanto constrangido Horatio, enquanto cruzava as pernas.


- Meu Deus! – exclamou Rick Turner, deveras surpreso.


- Agora ele está na cadeia por isso. Pegou 50 anos. – falou Horatio.


- Capaz de ele sair bem velhinho de lá, ou até nem sobreviva... – disse Rick Turner com pessimismo.


- Vai sair com 64 anos. – disse Horatio, afirmativo.


- Só?! Então, com quantos anos ele matou essas pessoas? – falou Rick Turner, pasmado.


- 14 anos. – disse Horatio, curvando-se e pegando um pedaço de pão próximo aos seus pés. Horatio joga-o para as aves, mas essas já não estão mais interessadas. Em vez delas, surgiu um esquilo serelepe que pegou a migalha com as duas patinhas dianteiras e começou a roer a iguaria, como um francês experimentando um ratatouille na Provence.

- Meu Deus! – exclamou Rick Turner, ainda pasmado.


- Bom, vou indo. Prazer, senhor Turnner. – disse Horatio, estendendo a mão ao seu companheiro de banco.


- Até logo. Prazer também, senhor Lane. Olhe, eu venho sempre aqui ler meu jornal. A gente se fala. – disse Rick Turner.

Horatio sorriu. Levantou-se e saiu. Rick Turner antes de voltar a sua leitura, virou-se na direção de Horatio mais uma vez e falou:


- Ei, senhor Lane, acho que o senhor entendeu o que o seu pai quis dizer. – disse Rick Turner.

Horatio voltou-se para ele e falou:



- Acho que entendi, mas foi por sua causa, senhor Turner. Por causa da sua conversa comigo agora. Obrigado.


- Uma última coisa... – falou Rick Turner.


- O que? – perguntou, Horatio Lane.



- E os seus pais, o que pensam do seu irmão? – falou Rick Turner, numa última tentativa para entender tão inusitada história.

Horatio, riu, olhou para a bucólica paisagem ao redor, se aproximou de Rick Turner, curvou-se e respondeu baixinho:

- Eles não pensam nada. Meu irmão os matou meu caro senhor Turner.

Horatio Lane saiu com as mãos dentro dos bolsos do sobretudo, enquanto o esquilo que há pouco comera a migalha de pão doada por Horatio, tinha tomado o seu lugar no banco. O roedor parecia lamentar a ida do doador sem ao menos se despedir. Quiçá tivesse uma tênue certeza de que no dia seguinte ele estaria ali, outra vez, a alimentá-lo.

quinta-feira, 23 de maio de 2013

Coisas da China!

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Gente, vejam só o quanto custa publicar livros no Brasil e o quanto custa na China. Depois querem que os brasileiros leiam muito. Mais vale comprar umas garrafas de Skol acompanhadas de batatas fritas e assistir o Brasileirão dando uns peidos de vez em quando, do que adquirir um livro para pagar em três ou quadro vezes e correr o risco de não gostar. Conclusão: Vou estudar mandarim!

 

A invencível invasão chinesa

Autor: 
Coluna Econômica

Em O Globo de ontem, a informação de que as editoras brasileiras estão mandando imprimir seus livros na China.

É rápido e indolor. Pela Internet, faz-se o pedido e enviam-se as provas. Os custos são, em média, metade do mercado brasileiro. Depois, há o frete. Da China ao Brasil, por navio, o frete de um livro de 1,5 kg sai pelo mesmo valor de um frete rodoviário Rio-São Paulo.

Segundo explicou a Cosac ao Globo, o livro  "Linha do tempo do design gráfico do Brasil" é vendido a R$ 212. Se fosse impresso no Brasil, a edição custaria R$ 400. A Sextante lançou uma série a R$ 59,90. Se impressa no Brasil, sairia por R$ 100,00.

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Dados do MDIC (Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio) indicam que em 2012 o Brasil importou 13,5 mil toneladas de livros da China - o equivalente a 3,5 milhões de exemplares.
O único inconveniente chinês é o tempo de entrega: 120 dias, adequado para livros não best-sellers, que podem ser distribuídos a qualquer momento.

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Vamos a pequenos exercício sobre o câmbio, imaginando um livro chinês de R$ 100,00 e um brasileiro de R$ 200,00.

Suponha que, no custo final do livro, 40% sejam de insumos dolarizados (papel, cuja cotação é dolarizada).

No Momento 0, o custo do livro brasileiro é 100% superior ao do chinês.
Suponha, agora, uma maxidesvalorização de 50%. No produto brasileiro, o impacto de custos seria apenas sobre os 40% dolarizados. O produto brasileiro passaria para R$ 240 e o chinês para R$ 150. A diferença cairia para meros 60%.

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É por isso que produtores de frutas do nordeste estão importando embalagens de papelão da África do Sul, ou editoras, se não vão para a China, mandam fazer livros especiais no Chile.

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A primeira conclusão que se tira é que, um cálculo isento sobre a taxa de câmbio, exigiria uma desvalorização gigantesca para devolver a competitividade à produção nacional.

A segunda conclusão é que, enquanto não chega a maxi, nem avançam os investimentos em infraestrutura, há que se avançar na defesa comercial. Mas de que maneira?

Hoje em dia, o grande desafio brasileiro é revitalizar a Organização Mundial do Comércio (OMC) e as negociações multilaterais. Nas relações bilaterais, o país mais forte impõe sua lógica. Nas multilaterais, há espaço para se perseguir algum equilíbrio nas relações comerciais, tratando de forma desigual os desiguais.

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No âmbito da OMC, o foco atual dos países emergentes é não apenas abrir espaço para as commodities mas também para manufaturados. Ocorre que, nos níveis atuais de desajuste de câmbio, o Brasil jamais teria condições de definir alíquotas universais para classes de produtos. Em igualdade de condições tarifárias, a indústria brasileira seria esmagada pelos importados.
Por isso mesmo, para revitalizar a OMC, o ponto central seria incluir o câmbio nas questões comerciais. Uma defasagem cambial de 50% mata qualquer eficácia de alíquotas protetoras de importação.

Mas aí se esbarra em limitações consideráveis. No âmbito diplomático, há uma tendência brasileira de se aproximar da China, como maneira de equilibrar o poder diplomático dos Estados Unidos.  E, para a China, o câmbio é tabu.

Internamente, a barreira é maior ainda. Apenas o Sr. Crise conseguiria tirar o câmbio da sua inércia atual.

domingo, 19 de maio de 2013

Recuerdos


 














 

O CAÇADOR DE BIBAS

por Hélio Jorge Cordeiro


Raimundo acordou assustado com o barulho no andar de baixo. Filhos da puta! Não agüentaria mais um dia naquela espelunca. Desempregado, decidira arranjar um trabalho melhor do que empacotador de supermercado. Contudo, resignara-se ao pensar que só tinha o primeiro grau. Porra! Que vidinha de merda!

Tinha vindo a mais ou menos dois anos do Crato, Ceará, para São Paulo. E tudo que havia sonhado, começava a se desmoronar aos seus pés. Isso só podia ser coisa feita! Pensou com revolta.

Levantou-se e foi mijar. O encardido e as manchas de ferrugem na bacia do minúsculo banheiro revelavam seu declínio como pessoa. Sua imagem refletida na água mijada, não lhe agradou nenhum um pouco. Porra! Ainda por cima eu sou feio pra caraio! Pensou ele. Não encontrou a escova de dentes no lugar onde havia deixado na manhã anterior. Também isso não importava muito; não havia mais pasta fazia mais de três dias. Estava usando um resto de sabonete para limpar o que restara de dentes na boca.

Vestiu-se e saiu da espelunca. Porra! Tenho que fazer uma coisa que me faça um cara bem sucedido, senão voltarei pro Ceará como um fracassado! Como iria encarar o Padin Cíço, mesmo este estando no Juazeiro? Mas lá de cima ele podia ver tudo. Situação difícil.

No caminho, parou em frente a um botequim e pediu uma média com leite. Enquanto bebia e comia, olhava pro espelho em frente. O que vou fazer?! Ah, já sei! Pagou a conta e saiu.

Começou a perambular todo o centro, até que escureceu. Atravessou a rua e entrou num beco e bateu direto numa pequena barbearia, que mais parecia uma casa de gnomo. Aliás, tinha o tamanho de um mausoléu, daqueles de gente fina, que estão à vista no cemitério da Consolação.

Entrou e encontrou o velho barbeiro dormindo com um jornal de esporte, cuja data não parecia ser desse século, jogado no colo. Raimundo sacolejou o homem que acordou assustado de navalha em punho e muito próxima à jugular do intruso. Raimundo recuperou-se do susto e pediu para que o velho desse um trato no pêlo.

Preparado para o trabalho e com um pequeno e sujo pano amarrado ao pescoço, Raimundo relaxou. O homem começou a manejar a tesoura demonstrando muita habilidade. A tremedeira nas mãos era disfarçada com o mastigar da tesoura. Trec, trec, trec!

Raimundo adormeceu e, o pior, o velho também! Tomado pelo madorna, o velho criou uma rede de vias e variantes dignas de qualquer cidade grande, sobre a cabeça do pobre Raimundo. O rapaz acordou-o e olhando-se no espelho gritou: Porra, seu velho idiota!

Sem ver mais saída para o trabalho de terraplanagem feito em sua cabeça, Raimundo pediu para que o imperito desse cabo de todo cabelo que tinha restado sobre sua cabeça. O velho, ainda tomado pelo sono eterno que se abatia sobre o corpo curvado que a idade lhe impunha, passou a máquina e, em segundos, não havia mais nada a cortar. Velho filha da puta! Raimundo pensou e, só depois é que pagou e saiu revoltado.

Quando ele chegou na rua principal encontrou um grupo de skinheads que logo o abordaram! Puta que pariu! Tô fudido! Ele havia ouvido falar desse pessoal, principalmente de que eles não gostavam de negro, nem muito menos de nordestino e, de lambuja, também não de homossexuais.

Um sujeito com cara de chihuahua o abraçou forte. Vamos acabar com essa corja de nordestinos, bichas e negros, mano! Isso é um cancro! A lama que mancha Sampa, meu!

Raimundo olhou pro resto do pessoal que esperava dele uma resposta e, finalmente, disse com todo gosto: Vamos acabar com essas bibas, esses neguinhos e... esses cabeça chatas, mano! Ouviu-se uma gritaria dos diabos. Levantaram-no do chão em efusiva comemoração. Quando se acalmaram os ânimos, um dos skinheads perguntou: - De onde tu é, mano? Eu? Sim. Sou daqui mesmo num tá vendo o meu sotaque? Pô, como eu num tinha sacado isso, mano! Paulistano na boa! Qual o teu nome? Meu nome? Assustado, Raimundo pensou: Arriégua e agora? Se falar que sou Raimundo vão logo descobrir que sou nordestino... Ray! O quê? Ray, meu nome é Ray! Isso é nome de negão, meu! Raimundo engoliu seco e pensou... E agora? Levantou a cabeça e respondeu: - Que nada, meu! Isso é a minha homenagem ao “firrer”, mano. O “chihuahua” o encarou: - Como assim? Raimundo levantou o braço e estendeu a mão e gritou: - Ray Hitler! O skinhead deu um sorriso largo mostrando que também não tinha uma boa quantidade de dentes e exclamou: - Legal, Ray! É isso aí, mano! Vamos nessa, irmão!

E lá se foi Raimundo, agora chamado de Ray pelos seus novos amigos. Até quando? Ninguém mais soube dizer...

sexta-feira, 10 de maio de 2013

Vamos cordeirar!






















A Fonte de Fidel

Por Hélio Jorge Cordeiro


Márcio apagou as luzes e fechou a porta do escritório atrás de si. Foi pra frente da porta do elevador. Apertou o botão do painel que de tão usado já estava côncavo. Um barulho surdo, mas longe, começou a ser ouvido. Parou. A porta se abriu. Márcio entrou. Aquela musiquinha chata tilintava seca, saindo nos precários alto falantes do cubículo que exalava um odor de detergente barato. Apertou o botão do térreo. Ele aproveitou para ajeitar a camisa por dentro da calça. Um solavanco. A porta se abriu.


Márcio caminhou por um corredor estreito revestido por um tipo de papel de parede cujos desenhos dariam náuseas se, neles, fosse fixado o olhar por mais de dois minutos. Seguiu até a recepção. Boa noite, seu Alencar! - disse se dirigindo ao porteiro. Boa, seu Márcio! – falou o servente, com um radinho de pilha grudado na orelha. O Palmeiras está ganhando! – Márcio deu de ombros, afinal futebol não era bem o seu fraco. Aliás, achava todos os esportes sem graça. Finalmente, ganhou a rua, mas antes bateu o grande portão adornado por folhas de parreira e cachos de uvas em ferro retorcidos com brilhante precisão.


Márcio seguiu pela rua onde pegaria seu carro, mas ao dobrar a esquina esbarrou com uma mulher, como um touro atraído pelo vermelho. Aliás, esta era a cor do vestido dela. Desculpe! - ele exclamou. Desculpe digo eu! - ela balbuciou ajeitando-se depois do esbarrão. Seus lábios carmim cintilavam com o reflexo da luz do poste. O rímel negro dava-lhe ares de atriz vampe. Seus olhos diziam alguma coisa que ele não conseguia decifrar.  Ali, sobrava sensualidade, de cima a baixo. Tinha as ancas largas. Por um momento Márcio se lembrou de sua mãe dizendo O corpo dessa dona é de mulher parideira! Voltou a observá-la. A mulher tinha a pele amorenada, o que lhe dava um ar brejeiro, quase rústico. Não tinha mais que 30 anos.


Márcio seguiu para o carro que estava perto de onde haviam se esbarrado, mas foi surpreendido com a mulher lhe chamando: Ei, pra onde você está indo? – seu chamado era uma mistura de mendicância, mas havia embutido nele um tom de autoridade tal e qual a de um superior inquirindo um subordinado. Márcio virou-se... Ela já estava colada ao seu lado. Bem...eu ia pra...Na verdade eu estou indo tomar um trago num bar que frequento há anos. O barzinho não é muito longe daqui... Barzinho? Legal! - disse ela olhando-o com um olhar igual ao de um menino barrigudo chorando por um bombom. Márcio não se conteve e perguntou: Você que ir até lá, comigo? Claro! Vou sim... Mas... Mas?! Vamos em meu carro. Depois eu te deixo aqui pra você pegar o seu. Por um instante, passou pela sua cabeça que aquilo soava como se fosse a sua mãe falando... Ele aceitou e seguiu para o carro dela.


Ela entrou, todavia não se preocupou em ajeitar o vestido quando sentou em frente ao volante de seu Beatle Amarelo. Ele entrou e fechou aporta com cuidado. Aquela era a primeira vez que Márcio andava de Beatle. Nossa como ficou interessante o fusca. Desculpe! As pernas morenas e brilhosas por baixo da meia calça de nylon acenavam pra ele com um Seja bem vindo ao meu apertadinho Beatle, Márcio. Ele esboçou um leve sorriso. Vá falando onde fica o bar... – ela falou esbanjando simpatia. Mais duas quadras. - disse ele sem pensar muito.


O carro estacionou quase em frente ao bar. Ela desceu e mais uma vez suas pernas continuava a lhe chamar. Calma, Márcio!- disse a voz interior de Márcio. Ele foi ao seu encontro na calçada. Eu nem me apresentei... - ele disse, enquanto lhe estendia a mão, mas ela em vez de apertá-la, puxou-o pra si e o beijou na face. A princípio, Márcio ficou meio desconcertado com a iniciativa dela, mas depois relaxou. Elisa - disse ela. Márcio – replicou ele.


O bar era um bar do tipo bistrô. Tinha uma luz ambiente que fazia relaxar o mais imperativo dos humanos, mas ao mesmo tempo, tinha uma decoração quase exagerada. Folhas de bananeiras e pequenas palmeiras de plástico, aqui e ali, davam ao lugar um ar caribenho. Uma música tocava ao fundo. Era convidativa, do tipo dançante. Que legal! Disse ela, olhando ao redor e sacolejando os ombros. Eu gosto muito daqui. Faz as minhas noites parecerem que a vida vale à pena ser vivida. – disse Márcio dando de cara com Faustino, o garçom, pernambucano, que sempre lhe atendia. Seu Márcio! Olá, Faustino! Tem uma mesa pra nós dois lá fora na Fonte de Fidel? Acho que tem sim. Vamos lá! – falou Márcio, aproveitando pra ter o gostinho de mandar naquele mulherão. Acenou para ela seguir a sua frente, mostrando cortesia para impressioná-la, enquanto mirava suas nádegas adernando, pra direita, depois para esquerda.


Faustino já estava há alguns passos à frente. Ele os conduziu até uma mesinha que ficava perto de uma fonte d’água, que caia sobre uns pedregulhos recobertos de limo. Uma escultura encravada na parede de granito de onde jorrava a água, detalhe que criava um ambiente bem fresco e agradável, tinha a cara de Fidel Castro. A música agora era audível. Toca uma salsa. 


Sentaram e pediram. Ela pediu Martini. Vodka com gelo ele pediu. Esperam. Faustino chegou com as bebidas e os deixou, em seguida. Os dois ficaram ali observando a água sair da boca de Fidel e escorrer sobre as pedras esverdeadas. Bem...Tim-Tim! Ela aproximou-se, encostou seu cálice no dele. Sempre lhe admirei? – ela disse com voz melosa, olhando fundo nos olhos dele. Como, assim?! – perguntou, Márcio, surpreso, pois aquilo prenunciava que ela já o conhecia de algum lugar. Eu sempre achei você o máximo. Desculpe perguntar, mas você me conhece de onde? Não importa. Importa? Bem, é que... Deixe as coisas fluírem, Márcio. Não interrompa quando o universo está em seu processo de conspiração, principalmente, conspirando a seu favor! Isso é mesmo muito engraçado. Estou com uma mulher bonita... Obrigada! , ela interrompeu. ...e nada sei sobre ela, porém ela parece saber sobre mim e mesmo assim, ela não quer entrar em detalhes sobre isso. Márcio deixou que Elisa levasse seu joguinho em frente. Não demorou e as doses haviam terminado. Uma nova rodada foi encomendada para Faustino. E por falar nele, Márcio pediu licença pra ir ao banheiro. Contudo, ele foi primeiro ao encontro do garçom com a intenção de perguntar-lhe se ele já havia visto Elisa alguma vez no bar, mas o garçom disse-lhe que ela nunca havia pintado por ali. 


Ele voltou para mesa e lhe fez uma pergunta que lhe ocorrera enquanto mijava. Você é solteira? Não, casada, igual a você! – ela disse sorrindo. Porra, ela sabe que eu sou casado! – pensou, Márcio, assustado. Mas de onde essa mulher me conhece? - se perguntou mais uma vez, enquanto ela comentava sobre um assunto qualquer. Casada?! – Márcio não teve tempo de pensar mais uma vez, pois Elisa logo emendou Sim, aliás, quero lhe apresentar meu marido Cláudio... Márcio quase caiu da cadeira quando um homenzarrão chegou por detrás dele. Era um sujeito elegante, do tipo  que vai ao melhor alfaiate da cidade. Talvez tivesse no máximo uns 50 anos. Este é Márcio. Olá Marcio. Cláudio. Prazer... Márcio não articulava uma frase completa, de tão atarantado que estava com a presença súbita do marido de Elisa. Por fim, se acalmou. Cláudio pediu licença para sentar. Estão bebendo o quê? Eu, Martini e Márcio Vodka. - Elisa se adiantou ao mesmo tempo em que se apressou em chamar o garçom. Ela levou a mão direita para o alto e logo Faustino, que estava ali por perto, veio depressa em seu socorro: Uma dose de Jack Daniels com duas pedras de gelo, por favor. pediu Cláudio. Sim, senhor. E antes que Faustino fosse embora com o pedido, Márcio comandou Uma dose dupla de vodka, por favor, Faustino! E, mais uma vez, Elisa lhe surpreendeu: Um Martini duplo pra mim!


Ficaram calados por alguns instantes. Cláudio também lhe admira.- disse Elisa. Porra, até o cara sabe alguma coisa de mim!- Márcio pensou e depressa agradeceu: Obrigado. Mas, por favor, de onde vocês me conhecem? Com licença. Faustino os interrompeu, trazendo os drinques. Obrigado, Faustino! - disse Elisa com um sorrisinho de quem já conhecia o garçom de outros carnavais. O que porra essa gente quer de mim? – Márcio se perguntou já um tanto impaciente. Uma vez por todas... Nem conseguiu articular o resto da frase e Cláudio lhe tomou pelo pescoço e o beijou na boca! Puta que pariu! – Márcio gritou abafado pra que ninguém mais o escutasse. Olhou pros lados. Não havia ninguém prestando atenção a mesa, pelo menos foi o que ele pensou, ou melhor, desejou. O que significa isso?!- Márcio falou num tom forte, para que soubessem que ele estava indignado com aquela atitude intempestiva e sem nexo, do marido de Elisa. Na verdade, ele teve vontade de lhe dar uma porrada, se levantar e cair fora, mas ele ficou onde estava, só que agora, um pouco mais afastado de Cláudio que se desculpou. Não suportei esperar. – completou, antes que Márcio dissesse mais alguma coisa. Elisa se achegou e pegou na mão de Márcio. Ele relutou, querendo repeli-la, mas ela foi firme e manteve-se segurando forte. Márcio seja razoável. Somos todos adultos. Na verdade, pensei que você tivesse olhado para minhas pernas lá no carro, como quem quisesse algo mais delas... Elisa abriu as pernas e levou a mão dele que ela segurava firme, até a sua vagina. Elisa estava sem calcinhas. Os dedos de Márcio umedeceram e escorregaram mais fundo. Isso provocou nele uma ligeira ereção, mas que logo desapareceu. Isto é mesmo uma loucura... Desculpe, mas acho que tudo isso é um grande engano. Um erro. Eu não conheço vocês... Elisa se adiantou Mas nós o conhecemos. Vou ter que ir – Márcio disse nervoso, mas Cláudio foi mais convincente. Ele colocou a mão no ombro de Márcio quando este tentou se levantar. Cláudio falou, calmamente Olha, Marcio, dentro de mais uns três minutos alguém vai chegar aqui e explicar tudo pra você e então ficaremos todos bem e felizes. Espere só mais um pouquinho. Tá bem? Mais uma vez, Márcio hesitou em ir embora. Era como se ele estivesse atado a uma corrente de navio com uma enorme âncora numa ponta e, na outra, o próprio navio. Que diabo está fazendo, cara? - Márcio disse pra si mesmo. Baixou a cabeça, vencido. Ficou assim até sentir uma mão leve no seu ombro. Uma voz feminina o chamou Marcinho, querido! Marcinho! Márcio levantou a cabeça com dificuldade e deu de cara com Telminha, sua mulher! Vamos embora pra casa. Você já bebeu muito por hoje Marcinho ao mesmo tempo em que outra voz dizia Pode deixar, seu Márcio, a conta, o senhor paga amanhã disse Faustino, enquanto arrumava as cadeiras em cima das mesas. O bar havia fechado, fazia horas. 


Márcio levantou-se, mas antes levou os dedos ao nariz. Sorriu. A água continuou fluindo da Fonte de Fidel e se espalhando por entre os pedregulhos encardidos de limo.

quinta-feira, 9 de maio de 2013

Vamos lispectar!




























O Crime do Professor de Matemática
Clarice Lispector
(do livro Laços de Família)

Quando o homem atingiu a colina mais alta, os sinos tocavam na cidade embaixo. Viam-se apenas os tetos irregulares das casas. Perto dele estava a única árvore da chapada. O homem estava de pé com um saco pesado na mão.

Olhou para baixo com olhos míopes. Os católicos entravam devagar e miúdos na igreja, e ele procurava ouvir as vozes esparsas das crianças espalhadas na praça. Mas apesar da limpidez da manhã os sons mal alcançavam o planalto. Via também o rio que de cima parecia imóvel, e pensou: é domingo. Viu ao longe a montanha mais alta com as escarpas secas. Não fazia frio mas ele ajeitou o paletó agasalhando-se melhor. Afinal pousou com cuidado o saco no chão. Tirou os óculos talvez para respirar melhor porque, com os óculos na mão, respirou muito fundo. A claridade batia nas lentes que enviaram sinais agudos. Sem os óculos, seus olhos piscaram claros, quase jovens, infamiliares. Pôs de novo os óculos, tornou-se um senhor de meia-idade e pegou de novo no saco: pesava como se fosse de pedra, pensou. Forçou a vista para perceber a correnteza do rio, inclinou a cabeça para ouvir algum ruído: o rio estava parado e apenas o som mais duro de uma voz atingiu por um instante a altura - sim, ele estava bem só. O ar fresco era inóspito, ele que morara numa cidade mais quente. A única árvore da chapada balançava os ramos. Ele olhou-a. Ganhava tempo. Até que achou que não havia porque esperar mais.
 
E no entanto aguardava. Certamente os óculos o incomodavam porque de novo os tirou, respirou fundo e guardou-os no bolso.
 
Abriu então o saco, espiou um pouco. Depois meteu dentro a mão magra e foi puxando o cachorro morto. Todo ele se concentrava apenas na mão importante e ele mantinha os olhos profundamente fechados enquanto puxava. Quando os abriu, o ar estava ainda mais claro e os sinos alegres tocaram novamente chamando os fiéis para o consolo da punição.
O cachorro desconhecido estava à luz.
 
Então ele se pôs metodicamente a trabalhar. Pegou no cachorro duro e negro, depositou-o numa baixa do terreno. Mas, como se já tivesse feito muito, pôs os óculos, sentou-se ao lado do cão e começou a observar a paisagem.
 
Viu muito claramente, e com certa inutilidade, a chapada deserta. Mas observou com precisão que estando sentado já não enxergava a cidadezinha embaixo. Respirou de novo. Remexeu no saco e tirou a pá. E pensou no lugar que escolheria. Talvez embaixo da árvore. Surpreendeu-se refletindo que embaixo da árvore enterraria este cão. Mas se fosse o outro, o verdadeiro cão, enterrá-lo-ia na verdade onde ele próprio gostaria de ser sepultado se estivesse morto: no centro mesmo da chapada, a encarar de olhos vazios o sol. Então, já que o cão desconhecido substituía o "outro", quis que ele, para maior perfeição do ato, recebesse precisamente o que o outro receberia. Não havia nenhuma confusão na cabeça do homem. Ele se entendia a si próprio com frieza, sem nenhum fio solto.

 
Em breve, por excesso de escrúpulo, estava ocupado demais em procurar determinar rigorosamente o meio da chapada. Não era fácil porque a única árvore se erguia num lado e, tendo-se como falso centro, dividia assimetricamente o planalto. Diante da dificuldade o homem concedeu: "não era necessário enterrar no centro, eu também enterraria o outro, digamos, bem onde eu estivesse neste mesmo momento em pé". Porque se tratava de dar ao acontecimento a fatalidade do acaso, a marca de uma ocorrência exterior e evidente - no mesmo plano das crianças na praça e dos católicos entrando na igreja - tratava-se de tornar o faro ao máximo visível à superfície do mundo sob o céu. Tratava-se de expor um fato, e de não lhe permitir a forma íntima e inpune de um pensamento.
 
À idéia de enterrar o cão onde estivesse nesse mesmo momento em pé - o homem recuou com uma agilidade que seu corpo pequeno e singularmente pesado não permitia. Porque lhe pareceu que sob os pés se desenhara o esboço da cova do cão.
 
Então ele começou a cavar ali mesmo com pá rítmica. Às vezes se interrompia para tirar e de novo botar os óculos. Suava penosamente. Não cavou muito mas não porque quisesse poupar seu cansaço. Não cavou muito porque pensou lúcido: "se fosse para o verdadeiro cão, eu cavaria pouco, enterrá-lo-ia bem à tona". Ele achava que o cão à superfície da terra não perderia a sensibilidade.
 
Afinal largou a pá, pegou com delicadeza o cachorro desconhecido e pousou-o na cova.
Que cara estranha o cão tinha. Quando com um choque descobrira o cão morto numa esquina, a ideia de enterrá-lo tornara seu coração tão pesado e surpreendido, que ele nem sequer tivera olhos para aquele focinho duro e de baba seca. Era um cão estranho e objetivo.
 
O cão era um pouco mais alto que o buraco cavado e depois de coberto com terra seria uma excrescência apenas sensível do planalto. Era assim precisamente que ele queria. Cobriu o cão com terra e aplainou-a com as mãos, sentindo com atenção e prazer sua forma nas palmas como se o alisasse várias vezes. O cão agora era apenas uma aparência do terreno.
 
Então o homem se levantou, sacudiu a terra das mãos, e não olhou nenhuma vez mais a cova. Pensou com certo gosto: acho que fiz tudo. Deu um suspiro fundo, e um sorriso inocente de libertação. Sim, fizera tudo. Seu crime fora punido e ele estava livre.
 
E agora ele podia pensar livremente no verdadeiro cão. Pôs-se então imediatamente a pensar no verdadeiro cão, o que ele evitara até agora. O verdadeiro cão que agora mesmo devia vagar perplexo pelas ruas do outro município, farejando aquela cidade onde ele não tinha mais dono.
 
Pôs-se então a pensar com dificuldade no verdadeiro cão como se tentasse pensar com dificuldade na sua verdadeira vida. O fato do cachorro estar distante na outra cidade dificultava a tarefa, embora a saudade o aproximasse da lembrança.
 
"Enquanto eu te fazia à minha imagem, tu me fazias à tua", pensou então com auxílio da saudade. "Dei-te o nome de José para te dar um nome que te servisse ao mesmo tempo de alma. E tu - como saber jamais que nome me deste? Quanto me amaste mais do que te amei", refletiu curioso.
 
"Nós nos compreendíamos demais, tu com o nome humano que te dei, eu com o nome que me deste e que nunca pronunciaste senão com o olhar insistente", pensou o homem sorrindo com carinho, livre agora de se lembrar à vontade.
 
"Lembro-me de ti quando eras pequeno", pensou divertido, "tão pequeno, bonitinho e fraco, abanando o rabo, me olhando, e eu surpreendendo em ti uma nova forma de ter minha alma. Mas desde então, já começavas a ser todos os dias um cachorro que se podia abandonar. Enquanto isso, nossas brincadeiras tornavam-se perigosas de tanta compreensão", lembrou-se o homem satisfeito, "tu terminava me mordendo e rosnando, eu terminava jogando um livro sobre ti e rindo. Mas quem sabe o que já significava aquele meu riso sem vontade. Eras todos os dias um cão que se podia abandonar."
 
"E como cheiravas as ruas!", pensou o homem rindo um pouco, "na verdade não deixaste pedra por cheirar... Este era o teu lado infantil. Ou era o teu verdadeiro cumprimento de ser cão? e o resto apenas brincadeira de ser meu? Porque eras irredutível. E, abanando tranquilo o rabo, parecias rejeitar em silêncio o nome que eu te dera. Ah, sim, eras irredutível: eu não queria que comesses carne para que não ficasses feroz, mas pulaste um dia sobre a mesa e, com uma ferocidade que não vem do que se come, me olhaste mudo e irredutível com a carne na boca. Porque, embora meu, nunca me cedeste nem um pouco de teu passado e de tua natureza. E, inquieto, eu começava a compreender que não exigias de mim que eu cedesse nada da minha para te amar, e isso começava a me importunar. Era no ponto de realidade resistente das duas naturezas que esperavas que nos entendêssemos: Minha ferocidade e a tua não deveriam se trocar por doçura: era isso o que pouco a pouco me ensinavas, e era isto também que estava se tornando pesado. Não me pedindo nada, me pedias demais. De ti mesmo, exigias que fosses um cão. De mim, exigias que eu fosse um homem. E eu, eu disfarçava como podia. Às vezes, sentado sobre as patas diante de mim, como me espiavas! Eu então olhava o teto, tossia, dissimulava, olhava as unhas. Mas nada te comovia: tu me espiavas. A quem irias contar? Finge - dizia-me eu -, finge depressa que és outro, dá a falsa entrevista, faz-lhe um afago, joga-lhe um osso - mas nada te distraía: tu me espiavas. Tolo que eu era. Eu fremia de horror, quando eras tu o inocente: que eu me virasse e de repente te mostrasse meu rosto verdadeiro, e eriçado, atingido, erguer-te-ias até a porta ferido para sempre. Oh, eras todos os dias um cão que se podia abandonar. Podia-se escolher. Mas tu, confiante, abanavas o rabo."

 
"Às vezes, tocado pela tua acuidade, eu conseguia ver em ti a tua própria angústia. Não a angústia de ser cão que era a tua única forma possível. Mas a angústia de existir de um modo tão perfeito que se tornava uma alegria insuportável: davas então um pulo e vinhas lamber meu rosto com amor inteiramente dado e certo perigo de ódio como se fosse eu quem, pela amizade, te houvesse revelado. Agora estou bem certo de que não fui eu quem teve um cão. Foste tu que tiveste uma pessoa."
 
"Mas possuíste uma pessoa tão poderosa que podia escolher: e então te abandonou. Com alívio abandonou-te. Com alívio sim, pois exigias - com a incompreensão serena e simples de quem é um cão heroico - que eu fosse um homem. Abandonou-te com uma desculpa que todos em casa aprovaram: porque como poderia eu fazer uma viagem de mudança com bagagem e família, e ainda mais um cão, com a adaptação ao novo colégio e à nova cidade, e ainda mais um cão? 'Que não cabe em parte alguma', disse Marta prática. 'Que incomodará os passageiros', explicou minha sogra sem saber que previamente me justificava, e as crianças choraram, e eu não olhava nem para elas nem para ti, José. Mas só tu e eu sabemos que te abandonei porque eras a possibilidade constante de eu pecar o que, no disfarçado de meus olhos, já era pecado. Então pequei logo para ser logo culpado. E este crime substitui o crime maior que eu não teria coragem de cometer", pensou o homem cada vez mais lúcido.
 
"Há tantas formas de ser culpado e de perder-se para sempre e de se trair e de não se enfrentar. Eu escolhi a de ferir um cão", pensou o homem. "Porque eu sabia que esse seria um crime menor e que ninguém vai para o Inferno por abandonar um cão que confiou num homem. Porque eu sabia que esse crime não era punível."

 
Sentado na chapada, sua cabeça matemática estava fria e inteligente. Só agora ele parecia compreender, em toda sua gélida plenitude, que fizera com o cão algo realmente impune e para sempre. Pois ainda não haviam inventado castigo para os grandes crimes disfarçados e para as profundas traições.
 
Um homem ainda conseguia ser mais esperto que o Juízo Final. Este crime ninguém lhe condenava. Nem a Igreja. "Todos são meu cúmplices, José." Eu teria que bater de porta e porta e mendigar que me acusassem e me punissem: todos me bateriam a porta com uma cara de repente endurecida. Este crime ninguém me condena. Nem tu, José, me condenarias. Pois bastaria, esta pessoa poderosa que sou, escolher de te chamar - e, do teu abandono nas ruas, num pulo me lamberias a face com alegria e perdão. Eu te daria a outra face a beijar."
 
O homem tirou os óculos, respirou, botou-os de novo.
 
Olhou a cova coberta. Onde ele enterrara um cão desconhecido em tributo ao cão abandonado, procurando enfim pagar a dívida que inquietantemente ninguém lhe cobrava. Procurando punir-se com um ato de bondade e ficar livre de seu crime. Como alguém dá uma esmola para enfim poder comer o bolo por causa do qual o outro não comeu o pão.

 
Mas como se José, o cão abandonado, exigisse dele muito mais que a mentira: como se exigisse que ele, num último arranco, fosse um homem - e como homem assumisse o seu crime - ele olhava a cova onde enterrara a sua fraqueza e a sua condição.
 
E agora, mais matemático ainda, procurava um meio de não se ter punido. Ele não devia ser consolado. Procurava friamente um modo de destruir o falso enterro do cão desconhecido. Abaixou-se então, e, solene, calmo, com movimentos simples - desenterrou o cão. O cão escuro apareceu afinal inteiro, infamiliar com a terra nos cílios, os olhos abertos e cristalizados. E assim o professor de matemática renovara o seu crime para sempre. O homem então olhou para os lados e para o céu pedindo testemunha para o que fizera. E como se não bastasse ainda, começou a descer as escarpas em direção ao seio de sua família.