terça-feira, 29 de abril de 2014

Lembrando Faraco




















IDOLATRIA

Sérgio Faraco

Eu olhava para a estrada e tinha a impressão de que jamais na vida chegaríamos a Nhuporã. Que pedaço brabo. O camaleão se esfregava no chassi e o pai praguejava:

— Caminho do diabo!

Nosso Chevrolet era um trinta e oito de carroceria verde-oliva e cabina da mesma cor, só um nadinha mais escura. No pára-choque havia uma frase sobre amor de mãe e em cima da cabina uma placa onde o pai anunciava que fazia carreto na cidade, fora dela e ele garantia, de boca, que até fora do estado, pois o Chevrolet não se acanhava nas estradas desse mundo de Deus.

Mas o caminho era do diabo, ele mesmo tinha dito. A pouco mais de légua de Nhuporã o caminhão derrapou, deu um solavanco e tombou de ré na valeta. O pai acelerou, a cabina estremeceu. Ouvíamos os estalos da lataria e o gemido das correntes no barro e na água, mas o caminhão não saiu do lugar. Ele deu um murro no guidom.
— Puta merda.
Quis abrir a porta, ela trancou no barranco.

— Abre a tua.

A minha também trancava e ele se arreliou:

— Como é, ô Moleza!

Empurrou-a com violência.

— Me traz aquelas pedras. E vê se arranca um feixe de alecrim, anda.

Agachou-se junto às rodas e começou a fuçar, jogando grandes porções de barro para os lados. Mal ele tirava, novas porções vinham abaixo, afogando as rodas. Com a testa molhada, escavava sem parar, suspirando, praguejando, merda isso e merda aquilo, e de vez em quando, com raiva, mostrava o punho para o caminhão.

O pai era alto, forte, tinha o cabelo preto e o bigode espesso. Não era raro ele ficar mais de mês em viagem e nem assim a gente se esquecia da cara dele, por causa do nariz, chato como o de um lutador. Bastava lembrar o nariz e o resto se desenhava no pensamento.

— Vamos com essas pedras!

Por que falava assim comigo, tão danado? As pedras, eu as sentia dentro do peito, inamovíveis.

— Não posso, estão enterradas.

— Ah, Moleza.

Meteu as mãos na terra e as arrancou uma a uma. Carreguei-as até o caminhão, enquanto ele se embrenhava no capinzal para pegar o alecrim.

— Pai, pai, o caminhão tá afundando!

A cabeça dele apareceu entre as ervas.

— Não vê que é a água que tá subindo, ô pedaço de mula?

E riu. Ficava bonito quando ria, os dentes bem parelhos e branquinhos.

— Tá com fome?

— Não.

— Vem cá.

Tirou do bolso uma fatia de pão.

— Toma.

— Não quero.

— Toma logo, anda.

— E tu?

— Eu o quê? Come isso.

Trinquei o pão endurecido. Estava bom e minha boca se encheu de saliva.

— Acho que não vamos conseguir nada por hoje. De manhãzinha passa a patrola do DAER*, eles puxam a gente.

Atirou a erva longe e entrou na cabina.

— Ô Moleza, vamos tomar um chimarrão?

Fiz que sim. Ao me aproximar, ele me jogou sua japona.

— Veste isso, vai esfriar.

A japona me dava nos joelhos e ele riu de novo, mostrando os dentes.

— Que bela figura.

A cara dele era tão boa e tão amiga que eu tinha uma vontade enorme de me atirar nos seus braços, de lhe dar um beijo. Mas receava que dissesse: como é, Moleza, tá ficando dengoso? Então agüentei firme ali no barro, com as abas da japona me batendo nas pernas, até que ele me chamou outra vez:

— Como é, vens ou não?

Aí eu fui.

* Sigla do departamento responsável pela conservação das estradas estaduais.

segunda-feira, 28 de abril de 2014

Eu também sou macaco!






















Bem a propósito dos recentes acontecimentos lá na Espanha, envolvendo torcedores e o nosso craque baiano Daniel Alves, aqui vai uma pequena e singela homenagem do blog aos racistas "around the world".

sábado, 26 de abril de 2014

Para não esquecer jamais!


























"Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o Coronel Aureliano Buendía havia de recordar aquela tarde remota em que seu pai o levou para conhecer o gelo. Macondo era então uma aldeia de vinte casas de barro e taquara, construídas à margem de um rio de águas diáfanas que se precipitavam por um leito de pedras polidas, brancas e enormes como ovos pré-históricos. O mundo era tão recente que muitas coisas careciam de nome e para mencioná-las se precisava apontar com o dedo. Todos os anos, pelo mês de março, uma família de ciganos esfarrapados plantava a sua tenda perto da aldeia e, com um grande alvoroço de apitos e tambores, dava a conhecer os novos inventos.

Primeiro trouxeram o ímã. Um cigano corpulento, de barba rude e mãos de pardal*, que se apresentou com o nome de Melquíades, fez uma truculenta demonstração pública daquilo que ele mesmo chamava de a oitava maravilha dos sábios alquimistas da Macedônia. Foi de casa em casa arrastando dois lingotes metálicos, e todo o mundo se espantou ao ver que os caldeirões, os tachos, as tenazes e os fogareiros caíam do lugar, e as madeiras estalavam com o desespero dos pregos e dos parafusos tentando se desencravar, e até os objetos perdidos há muito tempo apareciam onde mais tinham sido procurados, e se arrastavam em debandada turbulenta atrás dos ferros mágicos de Melquíades. "As coisas têm vida própria", apregoava o cigano com áspero sotaque, "tudo é questão de despertar a sua alma." José Arcadio Buendía, cuja desatada imaginação ia sempre mais longe que o engenho da natureza, e até mesmo além do milagre e da magia, pensou que era possível se servir daquela invenção inútil para desentranhar o ouro da terra.

Melquíades, que era um homem honrado, preveniu-o: "Para isso não serve." Mas José Arcadio Buendía não acreditava, naquele tempo, na honradez dos ciganos, de modo que trocou o seu jumento e um rebanho de cabritos pelos dois lingotes imantados. Úrsula Iguarán, sua mulher, que contava com aqueles animais para aumentar o raquítico patrimônio doméstico, não conseguiu dissuadi-lo. "Muito em breve vamos ter ouro de sobra para assoalhar a casa", respondeu o marido. Durante vários meses empenhou-se em demonstrar o acerto das suas conjeturas. Explorou palmo a palmo a região, inclusive o fundo do rio, arrastando os dois lingotes de ferro e recitando em voz alta o conjuro de Melquíades. A única coisa que conseguiu desenterrar foi uma armadura do século xv, com todas as suas partes soldadas por uma camada de óxido, cujo interior tinha a ressonância oca de uma enorme cabaça cheia de pedras. Quando José Arcadio Buendía e os quatro homens da sua expedição conseguiram desarticular a armadura, encontraram dentro um esqueleto calcificado que trazia pendurado no pescoço um relicário de cobre com um cacho de cabelo de mulher.

Em março os ciganos voltaram. Desta vez traziam um óculo de alcance e uma lupa do tamanho de um tambor, que exibiram como a última descoberta dos judeus de Amsterdam. Sentaram uma cigana num extremo da aldeia e instalaram o óculo de alcance na entrada da tenda. Mediante o pagamento de cinco reais, o povo se aproximava do óculo e via a cigana ao alcance da mão. "A ciência eliminou as distâncias", apregoava Melquíades. "Dentro em pouco o homem poderá ver o que acontece em qualquer lugar da terra, sem sair de sua casa." Num meio-dia ardente, fizeram uma assombrosa demonstração com a lupa gigantesca: puseram um montão de capim seco na metade da rua e atearam fogo nele pela concentração dos raios solares. José Arcadio Buendía, que ainda não se consolara de todo do fracasso dos seus ímãs, concebeu a idéia de utilizar aquele invento como uma arma de guerra. Melquíades, outra vez, tratou de dissuadi-lo. Mas terminou aceitando os dois lingotes imantados e três peças de dinheiro colonial em troca da lupa. Úrsula chorou de consternação. Aquele dinheiro fazia parte de um cofre de moedas de ouro que seu pai acumulara em toda uma vida de privações e que ela havia enterrado debaixo da cama, à espera de uma boa ocasião para investi-las.

José Arcadio Buendía nem sequer tentou consolá-la, entregue que estava por inteiro às suas experiências táticas, com a abnegação de um cientista e até mesmo com o risco da própria vida. Tentando demonstrar os efeitos da lupa na tropa inimiga, ele mesmo se expôs à concentração dos raios solares e sofreu queimaduras que se transformaram em úlceras e demoraram muito tempo para sarar. Diante dos protestos da mulher, alarmada por tão perigosa inventiva, por pouco não incendiou a casa. Passava longas horas no quarto, fazendo os cálculos das possibilidades estratégicas da nova arma, até que conseguiu compor um manual de uma assombrosa clareza didática e um poder de convicção irresistível.

Enviou-o às autoridades, acompanhado de numerosos testemunhos sobre as suas experiências e de vários apêndices de desenhos explicativos, aos cuidados de um mensageiro que atravessou a serra, extraviou-se em pântanos desmesurados, subiu rios tormentosos e esteve a ponto de perecer sob o ataque das feras, o desespero e a peste, até encontrar um caminho que o levasse às mulas do correio. Embora a viagem à capital fosse naquele tempo quase impossível, José Arcadio Buendía prometia tentá-la logo que o governo ordenasse, com o fim de fazer demonstrações práticas do seu invento diante dos poderes militares, e adestrá-los pessoalmente nas complicadas artes da guerra solar. Durante vários anos esperou a resposta. Por fim, cansado de esperar, lamentou-se diante de Melquíades do fracasso da sua iniciativa e o cigano, então, deu uma prova convincente de honradez: devolveu-lhe os dobrões em troca da lupa e deixou, para ele, além disso, uns mapas portugueses e vários instrumentos de navegação. De seu próprio punho e letra escreveu uma apertada síntese dos estudos do monge Hermann, que deixou à sua disposição para que pudesse se servir do astrolábio, da bússola e do sextante. José Arcadio Buendía passou os longos meses de chuva fechado num quartinho que construíra no fundo da casa, para que ninguém perturbasse as suas experiências. Tendo abandonado completamente as obrigações domésticas, permaneceu noites inteiras no quintal, vigiando o movimento dos astros, e quase sofreu uma insolação, por tentar estabelecer um método exato para determinar o meio-dia. Quando se tornou perito no uso e manejo dos seus instrumentos, passou a ter uma noção do espaço que lhe permitiu navegar por mares incógnitos, visitar territórios desabitados e travar relações com seres esplêndidos, sem necessidade de abandonar o seu gabinete. Foi por essa ocasião que adquiriu o hábito de falar sozinho, passeando pela casa sem se incomodar com ninguém, enquanto Úrsula e as crianças suavam em bicas na horta cuidando da banana e da taioba, do aipim e do inhame, do cará e da berinjela. De repente, sem anúncio prévio, a sua atividade febril se interrompeu e foi substituída por uma espécie de fascinação. Esteve vários dias como que enfeitiçado, repetindo para si mesmo em voz baixa um rosário de assombrosas conjeturas, sem dar crédito ao próprio entendimento. Por fim, numa terça-feira de dezembro, na hora do almoço, soltou de uma vez todo o peso do seu tormento. As crianças haviam de recordar pelo resto da vida a augusta solenidade com que o pai se sentou na cabeceira da mesa, tremendo de febre, devastado pela prolongada vigília e pela pertinácia da sua imaginação, e revelou a eles a sua descoberta:

- A terra é redonda como uma laranja.

Úrsula perdeu a paciência. "Se você pretende ficar louco, fique sozinho", gritou. "Não tente incutir nas crianças as suas idéias de cigano." José Arcadio Buendía, impassível, não se deixou amedrontar pelo desespero da mulher que, num impulso de cólera, destroçou o astrolábio contra o solo. Construiu outro, reuniu no quartinho os homens do povoado e demonstrou a eles, com teorias que acabaram sendo incompreensíveis para todos, a possibilidade de regressar ao ponto de partida navegando sempre para o Oriente. A aldeia inteira já estava convencida de que José Arcadio Buendía tinha perdido o juízo, quando Melquíades chegou para pôr a coisa em pratos limpos. Ressaltou em público a inteligência daquele homem que, por pura especulação astronômica, construíra uma teoria já comprovada na prática, se bem que desconhecida até então em Macondo, e como uma prova da sua admiração deu-lhe um presente que havia de exercer uma influência decisiva no futuro da aldeia: um laboratório de alquimia.

Por essa época, Melquíades tinha envelhecido com uma rapidez assombrosa. Nas suas primeiras viagens parecia ter a mesma idade de José Arcadio Buendía. Mas enquanto este conservava a sua força descomunal, que lhe permitia derrubar um cavalo agarrando-o pelas orelhas, o cigano parecia estragado por um mal tenaz. Era, na realidade, o resultado de múltiplas e estranhas doenças contraídas nas suas incontáveis viagens ao redor do mundo.

Conforme ele mesmo contou a José Arcadio Buendía, enquanto o ajudava a montar o laboratório, a morte o seguia por todas as partes, farejando-lhe as calças, mas sem se decidir a dar o bote final. Era um fugitivo de quantas pragas e catástrofes haviam flagelado o gênero humano. Sobreviveu à pelagra na Pérsia, ao escorbuto no arquipélago da Malásia, à lepra em Alexandria, ao beribéri no Japão, à peste bubônica em Madagáscar, ao terremoto na Sicília e a um naufrágio multitudinário no estreito de Magalhães. Aquele ser prodigioso que dizia possuir as chaves de Nostradamus era um homem lúgubre, envolto numa aura triste, com um olhar asiático que parecia conhecer o outro lado das coisas. Usava um chapéu grande e negro, como as asas estendidas de um corvo, e um casaco de veludo patinado pelo limo dos séculos. Mas, apesar da sua imensa sabedoria e de sua aura misteriosa, tinha um peso humano, uma condição terrestre que o mantinha atrapalhado com os minúsculos problemas da vida cotidiana. Queixava-se de achaques de velho, sofria pelos mais insignificantes prejuízos econômicos e tinha deixado de rir há muito tempo, porque o escorbuto lhe havia arrancado os dentes. No sufocante meio-dia em que revelou os seus segredos, José Arcadio Buendía teve a certeza de que aquele era o princípio de uma grande amizade. As crianças se assombraram com os seus relatos fantásticos. Aureliano, que naquele tempo não tinha mais de cinco anos, havia de recordar pelo resto da vida como o viu naquela tarde, sentado contra a claridade metálica e reverberante da janela, iluminando com a sua profunda voz de órgão os territórios mais escuros da imaginação, enquanto esguichava pelas têmporas a gordura derretida pelo calor. José Arcadio, seu irmão mais velho, havia de transmitir aquela imagem maravilhosa, como uma recordação hereditária, a toda a sua descendência. Úrsula, pelo contrário, conservou uma lembrança desagradável daquela visita, porque entrou no quarto no momento em que Melquíades quebrava por distração um frasco de bicloreto de mercúrio.

- É o cheiro do demônio - ela disse.

- Absolutamente - corrigiu Melquíades. - Está comprovado que o demônio tem propriedades sulfúricas, e isto não passa de um pouco de sublimado corrosivo.

Sempre didático, fez uma sábia exposição sobre as virtudes diabólicas do cinabre, mas Úrsula não lhe deu a menor atenção e levou as crianças para rezar. Aquele cheiro acre ficaria para sempre em sua memória vinculado à lembrança de Melquíades.(...)

Borghettiando


quinta-feira, 17 de abril de 2014

Mais de 100 anos de solidão sem Gabriel!



 























Gabo  se foi para onde já estava: a eternidade.  Gabriel Garcia Marquez perdeu a luta contra o câncer e morreu hoje. Na minha humilde opinião, ele e Cervantes foram os maiores escritores desse planeta. Depois que li 100 Anos..., decidi pensar em escrever. Obrigado, meu caro. Uma pena sua morte, mas como disse lá no começo, quem é eterno nunca morre. Salve Gabriel!

Ele nasceu, Gabriel José García Márquez em 6 de março1927 em Aracataca, Colômbia.

terça-feira, 8 de abril de 2014

Recordar é viver!



























DIGA COM QUEM TENS ANDADO QUE TE DIREI QUEM É ESSA PESSOA! 

Por Hélio Jorge Cordeiro

Era bem tarde quando bateram em minha porta. Não vi exatamente que horas eram, mas sei que era tarde.

- Puta merda quem será?!

Levantei-me e fui até a sala, ainda meio zonzo de sono, coçando a bunda. Quando abri a porta tomei um susto!

- Pelas barbas do Enéas!

Quem estava em pé na soleira do meu moquiço era eu, bêbado, segurando uma garrafa de vodka e fumando um charuto. Perguntei-me meio cambaleante: 

 - Posso entrar, pô?

Então, ainda meio sonolento, respondi-me: 

 - Humm... O que você tem aí, cara?

Então, balbuciando, me respondi: 

 - Pô, tenho aqui uma Smirnoff e um Romeo e Julieta...

Não pensei duas vezes, convidei-me a entrar.

Falamos de tudo um pouco; política, futebol e, é claro, mulher. Rimos pra valer e ficamos tristes também. Para encurtar a história, eu só sei que bebemos até o sol nascer. Sem ter mais o que dizer um ao outro, bêbados, eu e eu, resolvemos ir pra cama e dormimos até não sei quantas horas.

Acordei com uma dor de cabeça dos infernos, num bode danado. Eu tinha um pensamento e disse para mim mesmo: 

 - Puta que pariu cara! Tens que escolher melhor as tuas companhias!

quarta-feira, 2 de abril de 2014

Financiamento de campanha


Bem a propósito




















A FESTA DE ANIVERSÁRIO 
 Por Hélio Jorge Cordeiro

O capuz negro cobriu-lhe o rosto. Escuridão. Medo. Lembranças tomaram de assalto sua mente. Não, não fecha a porta!, dizia, implorando. Uma faixa de luz atravessava o pequeno quarto e terminava perto da cabeceira de sua cama. 

Agora trafegava dentro do camburão, numa estrada. Quase caiu quando a porta do veículo se abriu e ele foi empurrado para fora. Onde estava? Quem sabe, numa delegacia. Quartel, nem pensar. Seguiu empurrado. Para onde? Sentaram-no à força numa cadeira. Gente conversando; gargalhadas histéricas; garrafas e copos tilintavam em acordes dissonantes. Quem o levou a uma festa? Iria beber até cair, prometeu. Não! Era mesmo um sequestro. Só por que não pensava como eles? Meu Deus! E minha mãe, como estará a essa altura me esperando para jantar? Era o seu aniversário. 

Bons tempos, quando ele chegava de viagem para o seu aniversário. A alegria tomava conta dela, deixando-a jovial, tal qual uma mocinha recém-admitida no liceu. Ah, minha mãe... Ficou viúva muito cedo. Abriram-lhe a camisa. Depois lhe tiraram as calças. Meu Deus! Que estão a fazer comigo? Uma voz rouca trovejou: Filhos da puta! Pensam que são os bons. Comunistazinhos veados! Quem? Eu, comunista? Que graça. Nunca quis estar metido com o pessoal do DCE. Meu negócio era mesmo as festinhas e, é claro, as meninas! Lívia! Ela era mesmo uma perdição. Transamos quatro vezes; uma no corredor do quinto andar; outra na sala depois da aula de filosofia; outra atrás da reitoria e outra na casa dela. Lívia, Lívia... Houve uma vez que Fernando Meola me chamou para ir a uma reunião estudantil, mas eu dei uma desculpa e não apareci. Na verdade, eu fui a uma, mas saí antes. Ai, que é isso, porra?! Grampearam-lhe fios nos bicos dos peitos e acionaram um dínamo! Seu corpo foi tomado por uma dor fina, aguda e contorceu-se. Dor igual ou pior da que sentira quando, ainda pequeno, teve que obturar um dente e a anestesia não pegou direito. Desde então, passou a não gostar de dentistas. Tem que ir, filho! Quer ficar que nem dona Candinha Neves? Ele criou até uma mania por causa disso: lavava os dentes mais de quatro vezes ao dia. Tinha uma dentadura invejável. 

Não saberia dizer quem, mas uma vez o chamaram pra fazer um comercial de um dentifrício. Não o fez; estava prestes a concluir a universidade e tinha que se enfiar nos livros, dia e noite. Levantaram-no da cadeira. Tiraram os fios de seus peitos e os puseram nos escrotos. Porra! O que querem de mim? Minha dor? Não vale a pena! Lhes parece muita, mas, ainda assim, é pequena! disse, com um sorriso de provocação, querendo mostrar ser poeta, mas ali não era o palco para tal exposição lírica. Um telefone sem fio! Porra! Suas orelhas ficaram em brasa e um milhão de abelhas começaram a zumbir dentro de sua cabeça, acompanhadas por uma sirene de fábrica intermitente. Como estará minha família agora? Estão à mesa à minha espera. Posso até ouvir minha irmã dizer: Josias deve estar namorando algumazinha... e meu irmão mais velho: Ele deve estar com algum problema na Rural. Enquanto minha mãe: Vamos esperar o Jô, ele virá! 

Jogaram um pouco d’água no seu corpo nu. Que frio. Banho, é? Ainda não tomei, aliás ia tomar quando vocês chegaram! O colocaram de costas e retiraram o capuz. Que alívio! Obrigado! Em seguida, enfiaram sua cabeça no tonel com água! Ah, aquelas férias em Barra do Uma! Quase me afoguei. Também pudera, bebi que nem um gambá. Aquilo sim eram férias de verdade. Acampamentos, mulheres, bebidas, peixes. Noite de serestas... Já não aguentava tanto tempo mergulhado. Queria se soltar, mas os braços e mãos que o agarravam eram imensos e fortes. “Esse filho da puta é forte!” “Melhor, temos mais diversão!” 

Aquela noite foi a mais longa de sua vida e a última. 

Os pratos já estavam todos limpos; sua irmã já tinha se recolhido e lia, na cama, A Mãe, de Máximo Gorki. Já seu irmão, fora para casa. Morava sozinho. Não muito longe dali, em algum lugar na periferia, cavavam um buraco para jogarem Josias. Sua mãe continuou a esperá-lo para o seu aniversário.

 (Este conto fez parte do livro “Assassinos S/A – Contos Policiais Brasileiros – Antologia Ficção, Editora Multifoco – Rio de Janeiro, 2009, páginas 11 e 12.)

Dividir pra conquistar